Os desafios da recuperação de ativos e a missão da advocacia

“Follow the money.” No filme Todos os Homens do Presidente (1976) — versão cinematográfica da investigação conduzida por repórteres do Washington Post que levou ao escândalo Watergate — o personagem “Garganta Profunda” (identificado posteriormente como o ex-diretor do FBI, W. Mark Felt) orienta os jornalistas a seguir o rastreamento do dinheiro como forma de elucidar os fatos que culminaram na renúncia do então presidente norte-americano Richard Nixon.

Se já era desafiador desvendar os caminhos financeiros ilícitos nos anos 1970, o que dizer da complexidade dessa tarefa nos dias atuais? Em um mundo hiperconectado e globalizado como jamais visto na história da humanidade, fraudadores e organizações criminosas dispõem de uma ampla gama de artifícios para ocultar os proventos de seus delitos: offshores em paraísos fiscais, contas bancárias em múltiplos países, criptoativos e outras ferramentas digitais em constante evolução, estruturas societárias opacas, empresas de fachada, entre outros.

No Brasil, segundo dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), entre 2014 e 2023 houve um aumento de 420% no número de relatórios de informações financeiras suspeitas produzidos pela entidade. De acordo com pesquisa realizada pelo Senado Federal, mais de 40 milhões de brasileiros foram vítimas de crimes cibernéticos apenas no ano de 2024. Ou seja, o patrimônio dos cidadãos encontra-se vulnerável a fraudes praticadas por grandes empresários, instituições financeiras inidôneas, casas de apostas clandestinas e diversas modalidades de quadrilhas digitais.

Diante desse cenário, merecem destaque importantes inovações legislativas das últimas décadas, como a Lei nº 12.683/2012, que modernizou os mecanismos de combate à lavagem de dinheiro, possibilitando a decretação de medidas assecuratórias sobre proventos de crime, ainda que registrados em nome de terceiros (os chamados “laranjas”). Igualmente relevante foi a introdução, pelo chamado “Pacote Anticrime”, do instituto do confisco alargado, permitindo a perda de bens incompatíveis com a renda declarada de condenados por determinados crimes.

O Poder Judiciário, por sua vez, também vem demonstrando sensibilidade a essa nova realidade, a exemplo do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no Ag.Rg no REsp nº 1.712.934, no qual se afirmou que: “Tendo o magistrado de origem considerado que existiam indícios suficientes de que as pessoas jurídicas teriam se beneficiado direta e economicamente com tais práticas delitivas, mostra-se plenamente possível a constrição de seus bens.”

Entretanto, esse grave cenário brasileiro não será revertido sem a consolidação da compreensão, entre as Autoridades Públicas, da insuficiência da mera responsabilização pessoal dos investigados. É fundamental que o processo penal alcance também o patrimônio obtido ilicitamente, sobretudo em casos de fraudes contra investidores.

Nesse contexto, especialmente diante da crescente incidência de crimes financeiros — notadamente em fraudes praticadas por gestores de empresas de capital aberto, como se observou, ao que tudo indica, no caso Americanas — e em esquemas de pirâmides financeiras, evidencia-se a necessidade de atuação além do aparato estatal. Em muitos desses casos, os “gestores” literalmente surrupiam os recursos dos investidores e, posteriormente, valem-se do instituto da Recuperação Judicial, de forma fraudulenta, com o objetivo de blindar seu patrimônio, justificando seus ilícitos sob a alegação de grave crise financeira, logrando, por vezes, ludibriar até mesmo o próprio Poder Judiciário.


Nessas hipóteses, a atuação estatal, ainda que fundamental, mostra-se insuficiente. É nesse ponto que a advocacia moderna se revela essencial: a atuação de advogados especializados na realização de diligências investigatórias no |Brasil e no exterior, assim como na depuração de informações torna-se imprescindível para subsidiar e fortalecer as investigações conduzidas pelos órgãos públicos imparciais e dedicados ao combate do crime organizado.

Recentemente, como noticiado pela imprensa em geral, a Polícia Civil de São Paulo deflagrou operação contra banqueiros e executivos acusados de supostamente desviar ilicitamente os recursos de clientes brasileiros para uma offshore na América Central, utilizando-se, inclusive, posteriormente, do estratagema de uma fraudulenta recuperação judicial para blindar o próprio patrimônio.

Casos como esse somente se tornam viáveis mediante a atuação dedicada de defensores de vítimas e credores, que encetam diligências investigatórias no Brasil e no exterior para subsidiar as Autoridades responsáveis pela persecução penal a respeito da existência de fraudes, inclusive e sede de maliciosas Recuperações Judiciais, alertando para o fato de que, em determinadas situações, essas ações representam a etapa final de golpes sofisticados — não se tratando de companhias genuinamente em busca de soerguimento, mas de operações destinadas à blindagem dos bens dos próprios fraudadores.

Exemplo emblemático dessa atuação é a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que reconheceu como fraudulento o pedido de recuperação extrajudicial de certo grupo empresarial, determinando o encaminhamento dos autos ao Ministério Público para a adoção de medidas investigativas. Essa decisão teve origem ações contundentes das vítimas atuantes nos processos judiciais, que dentre outras ações, passaram a realizar diligências de levantamento e rastreio de ativos, no Brasil e no exterior, inclusive por meio de escrituras públicas que tiveram o condão de revelar complexas operações societárias e transferências de bens e imóveis entre os envolvidos, com o auxílio de novos agentes dedicados à ocultação patrimonial.

Ações como essas são fundamentais para a identificação de fraudes dessa natureza e a sua comunicação célere aos órgãos competentes — Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário — são fundamentais para robustecer e ampliar investigações em curso. Nesse sentido, o COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) desempenha papel crucial ao subsidiar as autoridades com relatórios de inteligência financeira e devem ser acionados ao seu tempo e modo.

Importante salientar que as informações fornecidas pelas vítimas também constituem elemento valioso no combate a esses crimes e devem ser consideradas na formulação das estratégias de recuperação de ativos.

Todos esses instrumentos — atuação privada especializada, integração com órgãos públicos, uso estratégico de informações financeiras e colaboração das vítimas — são essenciais para a efetiva recuperação patrimonial e para a obtenção de bloqueios judiciais capazes de assegurar o ressarcimento dos prejuízos sofridos.

fonte: https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/os-desafios-da-recuperacao-de-ativos-e-a-missao-da-advocacia/